ALGUMAS NUVENS

Porém, sobre esta estrela rutilante algumas nuvens se vão acastelando.
Os guardiães do regime começam a acordar no meio daquilo que, para eles, é um verdadeiro pesadelo. Desde as 3.30 que, no Porto, o comandante da PSP local telefona para o Comando da GNR a informar sobre a tomada do Quartel General da Região Militar pelos revoltosos. A partir deste primeiro alarme, as comunicações sucedem-se por todo o País. Até que, pelas 5.00, Silva Pais, director-geral da PIDE, telefona a Marcelo Caetano:

- Senhor Presidente, a Revolução está na rua!

É então que se decide que o chefe do Governo se deve acolher ao quartel do Carmo.
É surpreendente que um regime ditatorial, com uma experiência de repressão de quase cinco décadas e em cujas estruturas os militares tinham um peso tão significativo, estivesse afinal tão mal preparado para resistir a um golpe militar. Em todo o caso, algumas medidas foram sendo tomadas. Assim, pouco depois das 6.00 chega ao Terreiro do Paço um pelotão de AML/Chaimites pertencente ao Regimento de Cavalaria 7, comandado por um alferes miliciano que às primeiras palavras de Salgueiro Maia adere ao Movimento. O mesmo acontece a dois pelotões de Lanceiros 2. No Ministério do Exército, o ministro e outros elementos do Governo estão reunidos de emergência para fazer face à rebelião. Ao verem que as forças que vão sendo enviadas para os proteger vão aderindo à Revolução, os valorosos cabos de guerra encontram uma única saída para a situação: abrem à picareta um buraco na parede e, passando para a biblioteca do Ministério da Marinha, dão às de vila-diogo!

No Atlântico, a fragata Almirante Gago Coutinho, integrada numa esquadra da NATO, participa no exercício «Dawn Patrol». Recebe ordens para abandonar as manobras, entrar no Tejo e abrir fogo sobre as forças insurrectas que ocupam o Terreiro do Paço. Cerca das 9.00 a silhueta esguia da fragata surge diante do centro de Lisboa. Uma bateria da Escola Prática de Artilharia, de Torres Novas, segue em Londres , ou seja no morro do Cristo-Rei de Almada, os movimentos do navio. Porém sabe-se que o elevado poder de fogo do vaso de guerra pode causar grandes estragos. Tigre ordena a Charlie Oito que proteja o pessoal e os blindados, metendo o que for possível sob as arcadas da praça. O comandante Vítor Crespo consegue que seja anulada a ordem e que a fragata acabe por ir fundear, cerca do meio-dia, em frente ao Alfeite.
Quando Salgueiro Maia e o posto de comando ainda estão a suspirar de alívio por ter passado a ameaça da Gago Coutinho, surgem cinco carros de combate M/47 de Cavalaria 7 seguidos de atiradores do Regimento de Infantaria 1, da Amadora, e alguns soldados da PM de Lanceiros 2. Um brigadeiro comanda a coluna. Salgueiro Maia, de braços erguidos, agitando um lenço branco, tenta o diálogo, mas o brigadeiro não aceita encontrar-se com ele a meio caminho. Dá ordem a um alferes que abra fogo. O jovem não obedece. Irado, o brigadeiro, repete a ordem directamente aos apontadores dos carros e aos atiradores de infantaria. Salgueiro Maia está a descoberto debaixo da mira das torres dos blindados e das espingardas dos atiradores. Nem as tripulações dos carros nem os outros soldados obedecem. Dando vozes de prisão a torto e a direito, disparando para o ar, o brigadeiro salta do carro e desaparece. Toda a coluna fica sob as ordens do capitão Maia.

RUMO AO CARMO

Antes do meio-dia, pelo posto de comando, Salgueiro Maia é informado de que Marcelo Caetano está no Carmo. Deixando forças a guardar os ministérios, avança para lá. Quando entra no Rossio, aparece-lhe pela frente uma coluna militar com uma companhia de atiradores que o Governo enviara para fazer frente aos revoltosos. O Capitão salta do seu jipe e vai perguntar ao comandante da coluna o que está ali a fazer. É-lhe respondido que tem ordens para o prender, mas que está com a Revolução. E também esta coluna é integrada nas forças que avançam para o Carmo.

As edições especiais dos jornais começam a circular. O Rossio, a Rua do Carmo, todo o percurso, está cheio de populares que vitoriam os soldados. Os cravos vermelhos começam a ser enfiados nos canos das G-3. É cerca de 12,30. Diz o capitão: «No Carmo, ao chegar houve desde senhoras a abrir portas e janelas para colocar os homens nas posições dominantes sobre o Quartel, até ao simples espectador que enrouquecia a cantar o Hino Nacional. O ambiente que lá se viveu não tem descrição, pois foi de tal maneira belo que depois dele nada de mais digno pode acontecer na vida de uma pessoa».

Após a intimação para que a guarnição se renda e entregue Marcelo Caetano, não sendo obedecido, Maia recebe ordem do posto de comando para abrir fogo sobre o edifício. Porém, ele sabe que as granadas explosivas das autometralhadoras num largo apinhado de gente irão provocar centenas de mortes. Manda disparar armas automáticas para a parte superior do Quartel .

Entra uma primeira vez dentro do edifício, mas não consegue a rendição. Entra uma segunda vez e exige falar com o Presidente do Conselho. Numa antecâmara, Rui Patrício chora como uma criança e Moreira Baptista olha, ausente, o infinito. Deixemos que ele nos descreva o seu diálogo com Marcelo Caetano:

«Marcelo estava pálido, barba por fazer, gravata desapertada, mas digno.
Fiz-lhe a continência da praxe e disse-lhe que queria a rendição formal e imediata. Declarou-me já se ter rendido ao Sr. General Spínola, pelo telefone, e só aguardava a chegada deste para lhe transferir o Poder, para que o mesmo não caísse na rua! Estive para lhe dizer que estava lá fora o Poder no povo e que este estava na rua. Declarou esperar que o tratassem com a dignidade com que sempre tinha vivido e perguntou o que ia ser feito dele. Declarei que certamente seria tratado com dignidade, mas não sabia para onde iria, pois isso não me competia a mim decidir.

Perguntou a quem competia. Declarei que a «Óscar». Perguntou quem era «Óscar». Declarei ser a Comissão Coordenadora. Perguntou-me quem eram os chefes. Declarei serem vários oficiais, incluindo alguns generais, isto para que ele não ficasse mal impressionado por a Revolução ser feita essencialmente por capitães.
Perguntou-me ainda o que ia ser feito do Ultramar. Declarei-lhe que a solução para a guerra seria obtida por conversações. Toda esta conversa, tida a sós, teve por fundo o barulho do povo a cantar o Hino Nacional e o Está na hora».
Depois, pouco antes das 18.00, chega Spínola, que embora tenha dito a Marcelo nada ter a ver com o Movimento, rapidamente assume ares de «dono da guerra», no dizer de Salgueiro Maia. Às 19,30, Marcelo, Moreira Baptista e Rui Patrício entram numa viatura blindada que encostou a traseira à porta de armas do Quartel. Na confusão que se estabelece, com a multidão a gritar «assassinos!», e com os militares a proteger os homens do regime da ira popular, Henrique Tenreiro que deveria também seguir preso no transporte blindado, mistura-se com os populares e escapa-se, gozando mais umas horas de liberdade.

Após a rendição de Marcelo Caetano e a sua saída do Quartel, pode dizer-se que a Revolução estava ganha, embora, ali perto, na Rua António Maria Cardoso, os agentes da PIDE, encurralados como feras dentro da sua sede, disparassem das janelas, matando quatro pessoas. As únicas mortes verificadas durante o 25 de Abril (Fonte: Site Vidas Lusófonas).